Por João Victor,
“O que é, por conseguinte, o tempo?
Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a
pergunta, já não o sei.” (Confissões – Agostinho, Livro XI)
Poucos textos carregam o rigor de raciocínio que o Livro XI das
Confissões de Agostinho apresenta. Para quem não sabe, Santo Agostinho de
Hipona foi um dos Pais da Igreja, responsável pelo estabelecimento de vários
dos dogmas ainda aceitos pelo cristianismo. Mas sua importância não se limita
aos que professam a crença cristã. Agostinho também foi um filósofo
excepcional, como poderemos ver através de sua célebre análise do tempo.
A pergunta sobre o tempo não é fácil. Pode parecer, mas não é. Como
Agostinho nos mostra, é difícil entender de que modo existem passado e futuro.
De fato, não há como defender que eles existem realmente, pois o passado já não
existe mais, e o futuro ainda não existe.
Como, então, medimos o tempo, se o passado não existe e o futuro também
não? Não podemos nem mesmo dizer que o passado foi longo, pois não há o que
possa ter sido longo, já que ele não existe no momento em que o dizemos. Ou
seja: como dizer que o passado foi longo, se não há o que possa ter sido longo?
O mesmo se aplica ao futuro.
E quanto ao presente? Este, é claro, inegavelmente, existe, de algum
modo. Mas, será que o presente pode ser longo? Agostinho usa o exemplo de cem
anos presentes. Serão eles longos? Ora, mas o primeiro desses cem anos é
presente, e os outros 99 são futuros e, portanto, ainda não existem. Quando o
primeiro ano passar, o segundo será presente, o primeiro, passado, e os outros
98, futuros. Logo, cem anos não podem ser presentes.
Mas o ano se subdivide também em semanas, e o mesmo problema se
apresenta. Mas a semana também se subdivide em dias, e os dias em horas, e as
horas em minutos, e assim por diante. O que resta, então, que não possa ser
subdividido e que, portanto, seja, de fato, presente? Um instante que não tem
duração. O presente nada mais é do que um instante que, tão logo seja, deixa de
ser, por não ter extensão nem duração.
Contudo, apesar do problema, percebemos os intervalos de tempos, e os
comparamos entre si, medindo-os. Mas como fazemos isso? Não é possível medir o
que não existe, logo, não se pode medir o passado e o futuro. E o presente não
tem duração, não podendo, também, ser medido.
A solução de Agostinho para o problema é engenhosa e totalmente
inovadora. Ele diz o seguinte: o passado e o futuro só existem no presente.
Pois o passado existe como lembrança do que já foi, e o futuro existe como
antecipação do que será. É desse modo que medimos o tempo. Ao dizermos que um
certo poema é longo, por exemplo, sabemos disso porque lemos o poema e, na
medida em que lemos, guardamos na memória o que já passou do poema, mantemos a
atenção no que estamos lendo, e projetamos no futuro o que leremos. Ao
terminarmos o poema, tudo virou lembrança, passado, e nossa memória nos diz
sobre a duração do poema.
A originalidade de Agostinho deve-se ao compreender de que somos seres
temporais e que, portanto, não podemos falar do tempo como se fosse um objeto
exterior. Nossa compreensão do tempo é psicológica, e é assim que lidamos com
ele, internamente. À pergunta “com que meço eu o tempo”, Agostinho responde:
com meu espírito.
Se resta a dúvida sobre como diminui o futuro, se ele ainda não existe,
Agostinho diz que “o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe; o
futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado
porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa
expectação do passado”.
É crucial notar que Agostinho fala aqui de um tempo psicológico, em
contraste com um tempo ontológico, exterior ao ser humano. Portanto, Agostinho
não está negando a existência do tempo ontológico, como possa parecer, mas sim
diferenciando-o do tempo psicológico, que só existe desse modo, ou seja, como lembrança,
atenção e projeção.
Outro ponto interessante é que Agostinho abriu as portas, com essa
análise do tempo, para inúmeros filósofos que depois dele vieram. Através da
internalização do tempo na consciência, foi possível o surgimento de grandes
pensadores e obras como Heidegger com o “Ser e tempo”. Mesmo antes de
Heidegger, temos Kant, com a “Crítica da Razão Pura”, que transforma o tempo
numa das categorias do entendimento, pelas quais acessamos os fenômenos. Ambos
os casos mostram pensadores que analisaram o tempo como sendo interno ao ser
humano. Claro que a abordagem desses dois autores é muito diferente da de
Agostinho, mas é inegável sua importância para que célebres pensadores tenham
chegado a suas conclusões.
Em suma, podemos ver, com isso, que Agostinho foi um filósofo
extremamente rigoroso em seu raciocínio, e frutífero em vários âmbitos. É comum
haver desprezo para com ele por ter sido um pensador religioso, e por seu modo
de escrita, sempre citando Deus e louvando-o, mas isso é leviandade. Suas
posições não devem ser rejeitadas apenas pelo fundo religioso que tem, mesmo
porque há casos bastante claros onde esse fundo religioso pode ser deixado de
lado. A questão do tempo é uma delas.
Cito aqui, a título de exemplo, outro campo no qual Agostinho se
destacou e deixo uma contribuição significativa: a literatura. Agostinho é
conhecido, juntamente com Jean-Jacques Rousseau e Henry Miller, por sua
inovação no âmbito da auto-biografia. Ele foi, em suas Confissões,
extremamente honesto, sem desvirtuamentos de sua vida, e o valor literário
dessa obra é inegável. Rousseau e Miller, como dito, também se destacaram, mas
Agostinho foi o primeiro e, sem dúvida alguma, ajudou a firmar o gênero. Outro
indício inegável de sua genialidade.