Por José Antonio Lima Adaptado por Artur Eduardo
Em entrevista a ÉPOCA, Bart Ehrman, professor de estudos
religiosos da Universidade da Carolina do Norte, fala sobre seu novo livro, no
qual debate as contradições dos evangelhos
POLÊMICA
Ehrman afirma que apenas oito dos 27 livros no Novo
Testamento foram escritos pelos autores aos quais são atribuídos.
O americano Bart Ehrman cresceu em uma família religiosa e,
quando adolescente, havia se tornado um evangélico fervoroso. O interesse pela
Bíblia e por sua história o acompanhou a vida toda e hoje, após 35 anos de
estudo, diz ter abandonado o Cristianismo por não acreditar que Deus poderia
estar no “comando de um mundo cheio de dor e sofrimento”. Professor de estudos
religiosos na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Ehrman já
escreveu 21 livros sobre religião, incluindo Verdade e Ficção em O Código Da
Vinci, sobre o best-seller de Dan Brown, e O que Jesus Disse? O que Jesus Não
Disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, que figurou entre os mais vendidos na
lista do jornal The New York Times. Agora, em Jesus, Interrupted (ainda sem
tradução), que será lançado no Brasil no segundo semestre, Ehrman tenta revelar
as contradições da Bíblia, que provam, segundo ele, que o livro não foi enviado
à humanidade por Deus.
ÉPOCA – De um tempo para cá temos visto um crescimento do
número de títulos com críticas às religiões. O que está motivando os leitores?
Bart Ehrman – Há uma reação contra a direita conservadora do
mundo religioso. Aqui nos Estados Unidos há vários líderes desse tipo que
tiveram muita atenção da mídia por muito tempo, e as pessoas que estão do lado
esquerdo deste espectro começaram a se incomodar. Muitos desses livros escritos
por essas pessoas chamadas de "neo-ateístas" são uma representação
deste movimento.
ÉPOCA – Alguns dos principais representantes do
"neo-ateísmo" são Sam Harris e Richard Dawkins. Em um artigo recente
da revista Time, o senhor reconheceu que compartilha leitores com eles. Mas o
senhor se considera parte deste movimento?
Ehrman – Não me considero um ateu e não acho que estou
fazendo a mesma coisa que esses autores. Eles têm feito coisas boas, mas estão
atacando a religião sem conhecer muito. Quando eu escrevo, faço isso como
alguém que já esteve profundamente envolvido com a Cristandade, mas que agora a
rejeitou. Por isso, a minha perspectiva é completamente diferente.
ÉPOCA – O que fez o senhor passar de um fiel cristão a um
“agnóstico feliz”?
Ehrman – Fui criado na Igreja Protestante e fui um cristão
muito ativo por vários anos. Mas eu deixei a cristandade não por conta dos meus
estudos históricos sobre a Bíblia, mas por não conseguir mais acreditar que
poderia haver um deus no comando deste mundo cheio de dor e sofrimento.
"A Igreja acabou juntando duas visões, de que Jesus é
humano e divino, e criou um conceito que não está escrito nem [no evangelho] de
João e nem no de Mateus".
Capa do livro ´Jesus, Interrupted´, novo lançamento de Bart
Ehrman.
ÉPOCA – Qual é o motivo de o livro se chamar Jesus,
Interrupted [em tradução livre: Jesus, interrompido]? Quando e como ele foi
interrompido?
Ehrman – O título significa que há inúmeras vozes diferentes
falando no Novo Testamento. São autores diferentes, que possuem pontos de vista
diferentes e que, muitas vezes, são conflitantes. Com tantas vozes assim
falando no mesmo livro, muitas vezes é impossível escutar a voz do Jesus
histórico, porque ele foi interrompido por outras pessoas.
ÉPOCA – E é possível definir qual é a maior contradição da
Bíblia?
Ehrman – São muitas discrepâncias, mas é possível destacar
duas. O apóstolo Paulo, por exemplo, acha que a pessoa chega a Deus apenas pela
fé, e não pelo que faz. No capítulo 24 de Mateus, no entanto, nós lemos que
boas ações levam ao reino dos céus. Essas duas visões são excludentes em um
assunto determinante, que é a salvação. Também há visões diferentes sobre quem
era Jesus. No evangelho de João, Jesus é Deus, mas nos textos atribuídos a
Marcos, Mateus e Lucas não há nada sobre isso. No evangelho de Mateus fica
claro que ele acredita que Jesus é um ser humano, e que é o Messias. A Igreja
acabou juntando essas duas visões, de que ele é humano e divino, e criou um
conceito que não está escrito nem em João e nem em Mateus. (* Sobre estes dois
pontos especificamente veja o que escrevemos logo abaixo da entrevista, caro
leitor. Grifo nosso.).
ÉPOCA – O senhor acha que essas discrepâncias fazem da
Bíblia uma história falsa?
Ehrman – Eu diria que os diferentes autores da Bíblia tem
versões diferentes da história e por isso é errado tentar fazer com que eles
digam a mesma coisa. Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há
diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido.
"Na tradição católica a fé nunca foi sobre a Bíblia,
mas sobre os ensinamentos da Igreja e sobre acreditar que Jesus é o filho de
Deus"
ÉPOCA – Desde quando a Bíblia começou a ser questionada? De
que maneira isso enfraquece a Cristandade?
Ehrman – As pessoas só começaram a notar essas diferenças na
época do Iluminismo, no século XVIII. Antes disso, os estudioso da Bíblia eram
teologicamente comprometidos com ela e não imaginavam que poderia haver erros.
Essas descobertas são problemáticas especialmente para quem acredita que a
Bíblia foi entregue a nós diretamente por Deus. Se isso ocorreu, por que não
temos a Bíblia original? Por que temos apenas manuscritos escritos mais tarde e
que não são iguais? Essas diferenças mostram que não existe um livro com
inspiração divina que foi entregue a nós.
ÉPOCA – E como isso afeta especificamente a Igreja Católica?
Ehrman – Existem estudiosos na Igreja Católica que concordam
com quase tudo o que está escrito em Jesus, Interrupted. Mas na tradição
católica a fé nunca foi sobre a Bíblia, mas sobre os ensinamentos da Igreja e
sobre acreditar que Jesus é o filho de Deus. E isso não muda se a pessoa
perceber ou não os erros da Bíblia. É bem diferente do fundamentalismo cristão
que é tão poderoso onde eu vivo, no sul dos Estados Unidos. Aqui as pessoas
acham que você só poder ser cristão se acreditar totalmente na Bíblia.
Está a Bíblia tão cheia de erros assim? São as variações tão
profundamente significativas que nós não podemos ter uma idéia real de quem foi
o ´Jesus histórico´? Veja algumas evidências de que isto NÃO corresponde à
verdade, neste curto vídeo.
ÉPOCA – Alguns críticos do seu trabalho, especialmente o
líder evangélico James White, dizem que você quer destruir a fé cristã. O que
você acha disso?
Ehrman – Estou tentando destruir o tipo de fé cristã de
James White! (risos). Mas na verdade nada que eu faça pode destruir o
Cristianismo. O problema é que há um certo tipo de fé cristã que diz que a
Bíblia não tem erros e é infalível, e eu não concordo com isso. Eu não sou o
único que pensa assim. As opiniões que estão descritas no meu livro são as
mesmas da maioria dos estudiosos da Bíblia há muitas e muitas décadas, mas eles
não costumam falar disso em público. Meu livro apenas pega o que os estudiosos
dizem há muito tempo e torna disponível para os leitores normais.
ÉPOCA – Você recebeu muitas críticas de leitores por conta
do livro?
Ehrman – Recebi e-mails de pessoas bravas e sei que na
internet há muita gente contrariada. Dizem que quero destruir sua fé, que sou o
anti-Cristo. Mas a maior parte dos que escrevem ficou grata pelo livro e feliz
por eu ter dito essas coisas, já que suspeitavam desses erros, mas não tinham
base teológica para questionar a Bíblia.
Fonte: G1
NOTA: Em relação ao (*) acima, creio que o dr. Ehrman
destacou aquelas duas discrepâncias porque ele entende que as mesmas devem
figurar entre as mais significativas, pois do contrário não teria feito. Quando
ele fala do ´apóstolo Paulo´ está se referindo à teologia paulina, exposta nas
13 cartas do NT que lhe são atribuídas. Especificamente em relação à salvação
pela fé, pode-se destacar o seguinte texto:
"Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus
testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus
Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção, pois
todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente,
por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs,
no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça,
por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para
ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde, pois, a
jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não; pelo contrário, pela
lei da fé. Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei. É, porventura, Deus somente dos judeus? Não
o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, visto que Deus é um só, o qual
justificará, por fé, o circunciso e, mediante a fé, o incircunciso. Anulamos,
pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei.".
Romanos 3:21-31.
Este é um texto bastante elucidativo quanto à teologia da
salvação pela fé. Primeiramente, o pensamento sobre o qual Paulo se baseia para
construir o texto da Carta aos Romanos é o que diziam ´a Lei e os Profetas´, em
outras palavras, o Antigo Testamento. Seria de admirar que um conhecedor do
Antigo Testamento, como era Paulo, e que escrevia a gentios e judeus que conheciam
bem o Antigo Testamento ousasse falar acerca de algo sobre o quê não pudesse
comprovar. É óbvio que todo o Antigo Testamento fala sobre o Messias e dá-lhe a
conotação exata a partir da qual o Novo Testamento desenvolve a soteriologia
(doutrina da salvação), sempre comprovando o que estava dizendo com o que já
havia sido dito pelo AT. Contudo, é importante que visualizemos que Paulo está
fazendo um contraste entre a possibilidade de salvação pela fé em Deus (e na
pessoa de Cristo) e pelas obras da Lei, não se podendo confundir as ´obras´ (a)
com quaisquer outras obras, e (b) que as obras de fé, perseverança e fidelidade
para com Deus, conforme se registra em Mateus 24, não são a causa da salvação,
mas a sua consequência. Assim, não são quaisquer ´obras´ que Paulo está
frisando em Romanos; mas as que o autor está se referindo (que, segundo ele
contrastam com Romanos, em Mateus 24) são exatamente tais tipos de ´obras´.
Ninguém pode ser salvo ´pelas obras da Lei´, e esta sim é a
base de toda a teologia da salvação em Paulo. Por exemplo, em Gálatas 3:8-11
está escrito:
"Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria
pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados
todos os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão. Todos
quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está
escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no
Livro da lei, para praticá-las. E é evidente que, pela lei, ninguém é
justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé.".
O texto que Paulo cita, quando se refere a Abraão, é Gênesis
12:1-3:
"Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua
parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei
uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!
Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti
serão benditas todas as famílias da terra.".
Como os povos (famílias) poderiam ser abençoados em Abraão?
Se fosse pelas obras da Lei, tal promessa não teria significação alguma. A
expressão ´...todas as famílias´ não deve ser entendida no seu sentido literal,
pois assim todos, sem excessão, seriam abençoados em Abraão. Isto não acontece
justamente pelo fato de que o que deve ser enfatizado no texto é a predição da
salvação a todos os povos da Terra justamente no ato em que o povo hebreu é
formado, isto é, no ato da ´chamada´ de Abraão, o pai do povo hebreu (judeu).
Quando o Novo Testamento afirma que ´Deus não faz acepção de pessoas´ está,
geralmente, se referindo a isto: Que há salvação entre pessoas de todos os
povos da Terra! Ainda em relação ao texto da Carta aos Gálatas, notamos que
Paulo se apropria da idéia da ´justificação pela fé´ para, a partir do mesmo,
melhor explicitar a salvação aos gentios pela fé. O texto usado provém do Livro
do Profeta Habacuque, 2:4:
"Eis que a sua alma se incha, não é reta nele; mas o
justo viverá pela sua fé."
De que forma o ´justo´ viveria ´pela fé´? Primeiramente,
quem é ´o justo´? Evidentemente que mesmo pela teologia do Antigo Testamento o
justo não pode ser aquele que vive pela Lei, pois é impossível a prática de
todos os princípios da Lei. O ´justo´ é aquele a quem Deus imputa Justiça, e é
por isso que esta palavra aparece 6 vezes em Romanos, capítulo 4! Neste mesmo
capítulo, nos versículos 6 e 7 está escrito: "E é assim também que Davi
declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui justiça,
independentemente de obras: Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são
perdoadas, e cujos pecados são cobertos.".
Paulo se refere ao Salmo 32:1-2. Deus é quem imputa Justiça
ou justifica e, pelo Salmo 32, por exemplo, já observamos que os judeus tinham
o correto entendimento de que a Justiça de Deus provinha mediante o arrependimento
dos pecados e da fé: "Confessei-te o meu pecado e a minha iniqüidade não
mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu
perdoaste a iniqüidade do meu pecado." (vs. 5) e "Muito sofrimento
terá de curtir o ímpio, mas o que confia no SENHOR, a misericórdia o
assistirá." (vs. 10). Veja a última expressão em negrito e vermelho,
prezado leitor; no original, o verbo é ´batach´ e está no particípio-ativo, o
que poderia ser traduzido também por "...mas o que tem confiado no Senhor"
ou "...mas, o que tem tido fé no Senhor". É óbvio que o ideário de
justificação salvífica do indivíduo, a partir da ótica do Antigo Testamento,
era de arrependimento, contrição e fé em Deus. A insuficiência da conquista
salvífica a partir do cumprimento das obras da Lei é evidenciada na vida de
Jesus Cristo e desenvolvida pelos escritores neotestamentários, mas não há
qualquer tipo de conflito.
Isto é o que o Senhor Jesus diz no Evangelho de Mateus (e só
nele): "Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para
revogar, vim para cumprir.". Mateus 5:17. Como ele poderia cumprir a Lei,
se não fosse perfeito? É impossível o cumprimento da Lei haja vista que, como
diz Tiago 2:10: "Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só
ponto, se torna culpado de todos.". Esta é a diferença em Cristo Jesus!
Ele não poderia cumprir toda a Lei se fosse meramente humano, mas como
Deus-homem, tendo a semente divina em sua concepção poderia cumprir toda a Lei,
pois ele é o ideal (padrão) de homem, conforme a vontade de Deus. É curioso,
notarmos, que é justamente Mateus (aquele que Bart Ehrman afirma ter retratado
Jesus ´apenas como um humano´) quem mais fala sobre a concepção virginal de
Jesus e da citação do anjo Gabriel, que aparece a Maria dizendo as seguintes
palavras em Mateus 1:23: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um
filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus
conosco).". Isto, por sua vez, é o cumprimento de uma profecia messiânica
pronunciada em Isaías 7:14: "Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal:
eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel.".
Em tempo: O texto de Habacuque, capítulo 2, é justamente uma
palavra de refrigério a todos os que sofrem injustiças e uma exortação grave
àqueles que as cometem. É uma promessa de que os males morais, isto é,
perpetrados pelo homem (que são os que, de longe, mais prejudicam ao próprio
homem) serão um dia cobrados por Deus. Esta é a nossa confiança! Jesus Cristo
ressalta este princípio nas ´bem-aventuranças´ do Sermão da Montanha, mais uma
vez em Mateus, capítulo 5! Assim, o dr. Ehrman que diz perdido sua fé, não por
causa dos seus "estudos históricos" acerca da Bíblia (que os levaram,
vejam bem, às "conclusões" que ele escreve - e vende - em seus
livros), mas por causa da incompatibilidade de Deus estar no controle de todas
as coisas e o nosso mundo estar mergulhado em ´dor´ e ´sofrimento´. Penso que o
dr. Ehrman deveria, então, escrever sobre isto e não ficar apontando as
supostas (e mal relacionadas) contradições que ele encontra na Bíblia. Contudo,
não é isto o que ele diz no prefácio do seu livro ´O que Jesus disse, o que
Jesus não disse...´. Neste, ele afirma quase que categoricamente que sua fé
feneceu por causa de pressuposições teológicas liberais com as quais teve
acesso no período em que estudou em seminários liberais, nos EUA. Esta sua
afirmação de que não consegue coadunar fé e sofrimento e, portanto, ser este o
motivo de ele ter ´abandonado a Cristandade´ entra em franca contradição com o
que ele disse (e parece ter se esquecido) no prefácio de ´O que Jesus
disse...´.
Mas é assim mesmo. Estes que acusam tola e superficialmente
a Bíblia de ter "erros" e "discrepâncias" inconciliáveis são
eles mesmos em suas argumentações cheios de contradições.
Em Cristo Jesus,
Pr. Artur Eduardo