O pastorado é
um dos ofícios listados em Efésios 4.11-12: “E ele mesmo concedeu uns para
apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para
pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho
do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo”.
A leitura reformada dessa passagem (Calvino, Owen, Hendriksen) considera os
apóstolos, profetas e evangelistas como ofícios extraordinários e temporários,
dados por Cristo à Igreja para o estabelecimento de seus fundamentos. Os
pastores e mestres (ou pastores-mestres) são ofícios ordinários, concedidos à
Igreja durante todo o tempo entre a primeira e segunda vindas do Senhor Jesus.
O termo ofício possui, no âmbito eclesiástico, um sentido especial: uma função
relacionada ao governo e pastoreio da Igreja (daí os oficiais, presbíteros
docentes, regentes e diáconos). Tal uso diferenciado é necessário mas pode
gerar um mal-entendido. É possível sublimar tanto o significado desta palavra
ao ponto de esquecer-se de seu sentido primordial.
Ofício é, essencial e primariamente, um lugar de atuação na sociedade, um
serviço ou trabalho. Nesse sentido os antigos falavam do ofício de carpinteiro,
de escrivão, de alferes ou de médico. Em suma, um ofício é aquilo que hoje
denomina-se profissão.
A espiritualidade das profissões
O que é uma profissão? Um espaço para o cumprimento dos mandados da Criação.
Uma profissão não aponta meramente para uma ocupação ou um emprego,
mas para uma divina vocação. Assim sendo, todos os seres humanos — não apenas
os ministros da Igreja — são vocacionados. No exercício dos diversos ofícios o
Senhor é cultuado, o próximo é servido e a cultura é marcada pelo testemunho do
Criador. Tais cogitações produzem, necessariamente, alguns desdobramentos.
Primeiro, o exercício de todas as profissões honestas é para a glória de
Deus. Cada atividade na esfera dos trabalhos humanos pode ser empreendida como
culto e evangelismo (1Co 10.31; Cl 3.22-24). Não são apenas os pastores,
presbíteros e diáconos que prestarão contas pelo trabalho que realizaram no
âmbito na Igreja. Todos os cristãos responderão pelo modo como desenvolveram
suas atividades educacionais e profissionais, uma vez que, no sentido lato,
todos possuem (ou pelo menos deveriam possuir) ofícios.
Segundo, o trabalho é, de fato, dádiva sublime e direito inalienável (Gn
2.15). Não possuir um ofício é uma aberração existencial. O desemprego é um
pecado que afronta ao Criador. Governos agem de maneira ímpia quando, na
condução de suas políticas econômicas, induzem juros altos, que sufocam novos
empreendimentos, produzem recessão, aumentam o endividamento da população e
empurram os trabalhadores para a informalidade. Deus é provocado à ira quando
os habitantes de uma nação não têm acesso a educação de qualidade ou quando são
promovidas políticas de crescimento desordenado das cidades, sem a necessária
estrutura para absorção da nova massa de trabalhadores. Ao mesmo tempo, a
iniciativa de ensinar ofícios é bíblica e nobre.
Terceiro, o pastorado é, na essência, um trabalho. O pastorado possui
distinções transcendentes, altamente espirituais, mas, em suma, é um ofício, um
serviço prestado a Deus que possui suas peculiaridades, assim como as outras
profissões. Alguém poderá retrucar afirmando que o ministério pastoral se
diferencia pelo fato de exaltar a doutrina divina e contribuir para a expansão
do reino. Respondo dizendo que um juiz trabalhista, no desempenho honesto e
destemido de sua vocação, também exalta ao Senhor, dá testemunho do poder do
evangelho e confirma a presença do reino na cultura. A dignidade da função não
é encontrada no ofício em si, mas no Senhor que concede os talentos e a
vocação.
O trabalho não é o centro da vida
Há de considerar-se, nesse ponto, que todo ofício tem sua legitimidade e, ao
mesmo tempo, suas limitações. Todo trabalho deve ser desenvolvido como
parte do gracioso projeto de Deus para a vida humana, mas, simultaneamente,
deve ser dito que ninguém encontra seu centro de satisfação no trabalho em si,
mas em Deus que o concede. Essa é uma outra maneira de dizer que — mesmo nós
pastores — devemos trabalhar para viver e não viver para trabalhar.
Deve ser lembrado que os ofícios são passageiros. Haverá o dia em que as
forças faltarão, a própria Igreja exigirá — e com razão — um obreiro mais novo,
os filhos sairão de casa e só restarão o pastor jubilado e sua esposa, ambos
idosos, com uma parcela significativa de vida ainda pela frente. É a
dificuldade em compreender isso que produz, nos profissionais das mais diversas
áreas, a crise pós-aposentadoria ou, nos casais cujos filhos saíram recentemente
de casa, a síndrome do “ninho vazio”.
Essa é a razão pela qual Deus estabeleceu um padrão de rotina vivencial
demarcada por lacunas denominadas “descansos”. Um dia em cada sete foi separado
para revigoramento da mente, corpo, emoções e fé (Gn 2.1-3; Êx 20.8-11). Isso
indica que explodir a saúde, destruir os relacionamentos íntimos e familiares,
isolar-se ao ponto de não desenvolver amizades profundas ou trabalhar
exageradamente ao ponto de não ter tempo para a devoção, saudável diversão e
oxigenação do corpo ou da alma — nada disso é prescrito por Deus nas Sagradas
Escrituras. Tais coisas são valorizadas pela sociedade capitalista orientada
para a produtividade ou pelo arremedo de Cristianismo centrado em mártires e
heróis ascéticos, mas passam longe do padrão bíblico de vida com Deus.
O mito doentio do paladino da fé
Se isso é assim, não é errado o pastor trabalhar honesta, equilibrada,
responsável, fervorosa e eficazmente, mas sem exageros ou heroísmos
personalistas. O ideal do pastor que morre pelo trabalho eclesiástico é uma
distorção da doutrina bíblica do ministério. Deus deseja que estejamos prontos
a entregar nossas próprias vidas por ele e seu reino; não pelo trabalho.
Dentro do sistema de governo presbiteriano, pastores não são membros da igrejas
locais, mas dos presbitérios. Nas igrejas locais, os pastores passam e os
presbíteros permanecem. Se partirmos desse fato, o lógico seria pedir dos
presbíteros que estivessem dispostos a anular-se a si mesmos e entregar-se
fanaticamente aos trabalhos eclesiásticos, mas ninguém espera que um presbítero
morra pelos trabalhos da igreja, mas espera-se — ainda que inconscientemente —
isso do pastor. Um profissional de comunicação viciado em trabalho é submetido
a um tratamento psicológico. Um pastor viciado em trabalho é celebrado como
paladino da fé e ganha um prédio com o seu nome, após o seu falecimento
(normalmente precoce). Isso não é bíblico nem saudável.
É claro que muitos dos apóstolos morreram martirizados. Mas não foram apenas os
apóstolos; os cristãos de modo geral foram perseguidos nos primórdios da
história da Igreja e também recentemente, nas experiências comunistas da antiga
União Soviética e China, nos confrontos com os muçulmanos na Indonésia ou mesmo
na evangelização de etnias animistas em campos missionários. O martírio é uma
possibilidade a todo discípulo maduro de Jesus Cristo, mas isso não significa
que a doença ou a morte prematura devam ser buscadas. Cristãos — e pastores
estão incluídos aqui — devem ser bons mordomos de suas mentes, corpos, família
e recursos, testemunhando sobre a libertação, transformação e santificação
promovidas pela graça de Deus, demonstrando o que significa desfrutar da vida
abundante prometida pelo Redentor.
Diversão, vida pessoal e trabalho
Se isso é assim, não é errado o pastor divertir-se. Ele pode dar
risadas, aliviar o estresse, viajar, dedicar-se a passatempos, praticar
esportes, ouvir música, passear com a família e relaxar. Pastores são seres
humanos que precisam de refrigério.
Se isso é assim, não é errado o pastor saber dividir entre sua vida
pessoal, familiar e as tarefas da Igreja, considerando-as dessa forma mesmo,
como tarefas e não como o centro de sua vida.
Assim como é legítimo que um funcionário público tenha projetos pessoais fora
do âmbito de sua repartição, é legítimo que o pastor desenvolva, com sabedoria
e equilíbrio, projetos que não tenham necessariamente a ver com os trabalhos da
Igreja. Destarte, é descabido exigir, para contratação ou permanência de um
pastor em um campo, que ele abra mão de qualquer projeto pessoal e assuma como
centro do universo somente as atividades e exigências da Igreja. Isso é
antibíblico, cruel e desumano.
O pastor é, como todo trabalhador, um profissional que precisa desenvolver-se
de acordo com a semelhança de Cristo. Isso não significa, porém, anulação da
individualidade. O pastor possui vida pessoal, sonhos pessoais, anseios humanos
normais que não se relacionam com as tarefas eclesiásticas.
Pastores são guias crentes e humanos
A liderança espiritual inclui-se no bojo do ofício pastoral. Pastores são guias
de suas comunidades de fé. Eles assumem responsabilidades únicas e mui solenes.
Daí a importância de termos o ministério pastoral em alta estima e elevada
consideração.
Pastores lideram mostrando aos irmãos o que significa ser crente. Eles
exemplificam a vida pela fé. Mas fazem isso não como titãs da espiritualidade e
sim como homens. Eles demonstram como caminhar com Deus como seres humanos
regenerados e santificados. Fazem isso vivendo a vida comum dos homens, não
caminhando como gurus desligados das experiências, sentimentos, anseios e lutas
cotidianas da congregação.
Nesse contexto, pastores demonstram como viver com Deus e para a glória de
Deus; como trabalhar e descansar, como equilibrar as diversas demandas da
existência depositando tudo nas mãos misericordiosas do Altíssimo. Pastores
demonstram como seguir a Cristo com fé fervorosa, autêntica e, essencialmente,
bíblica, ensinando a sã doutrina e corrigindo quaisquer distorções da fé e
prática, inclusive os paradigmas errôneos acerca do próprio ministério
pastoral.
Pastores fiéis repudiam o profissionalismo, que é a tendência de relacionar-se
com a Igreja de forma mercantilista e gananciosa, ao mesmo tempo em que
reconhecem que o pastorado é uma vocação entre outras, um ofício e uma
profissão que deve ser exercida para a glória do Criador. Deus, não o trabalho
da Igreja é o centro da vida do pastoral. Penso que o que passar disso não
provém do Senhor.