Ao estudarmos sobre a hermenêutica, é importante que conheçamos nove
regras que devem nortear nosso trabalho de interpretação. Estas regras precisam
ser observadas e respeitadas para que se tenha uma extração bíblica do texto
sagrado.
NOVE PRINCÍPIOS MUITO ÚTEIS
1. ORAÇÃO
Todo o trabalho de interpretação
deve começar com a oração. É necessário que nos cubramos com a proteção de Deus
e convidemos o Espírito Santo a ser o nosso Mestre. O Espírito Santo tem uma
tarefa de ensinar-nos acerca de Cristo (Jo 16:13-14). Do mesmo modo, é ele quem
nos mostra as profundas revelações de Deus: "Mas Deus no-lo revelou pelo
Espírito, porque o Espírito a todas as cousas perscruta, até mesmo as
profundezas de Deus... Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim,
o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado
gratuitamente" (1Co 2:10, 12). Em outro lugar a Escritura afirma que nosso
conhecimento advém do fato de possuir uma unção do Espírito: "E vós
possuís unção que vem do Santo, e todos tendes conhecimento" (1Jo 2:20).O
verdadeiro entendimento da Palavra advém, em primeiro lugar, desse contato
íntimo e freqüente entre o intérprete e o Deus que inspirou as Escrituras.
2. DESCRIÇÃO OU PRESCRIÇÃO?
É preciso distinguir entre texto
descritivo e texto prescritivo. Descritivo é o texto que descreve algo, narra
um acontecimento. O fato de algo ser contado na Bíblia não significa que o
mesmo é regra para hoje. Os relatos históricos, por exemplo, transmitem-nos
preciosas lições espirituais. No entanto, não devemos tirar deles doutrinas
absolutas para nós hoje. Só podemos tirar doutrina de história se houver
concordância dos textos bíblicos doutrinários, principalmente nas epístolas do
Novo Testamento. Prescritivo é o texto que traz regras, ensinamentos e
mandamentos para nós hoje. Vemos nas Escrituras passagens destinadas claramente
à instrução e doutrinamento.
3. IR DO SIMPLES AO COMPLEXO
Pergunte sempre qual o
significado mais simples, mais claro, mais singelo. A Bíblia é um livro que
pode ser entendido por todo cristão, do erudito até o semi-analfabeto. A
verdade mais clara é sempre preferível aos posicionamentos nebulosos e
"profundos" (às vezes sem fundo mesmo!). Isso não significa que todo
o conteúdo bíblico seja fácil de entender. Em algumas partes do mesmo,
precisaremos de auxílio adicional, e aqui entra a contribuição das boas
introduções, manuais e comentários. E não apenas isso. Algumas passagens,
ficarão simplesmente sem interpretação, por completa falta de informação. Mesmo
o maior estudioso não sabe tudo sobre a Bíblia. Por isso mesmo devemos fugir de
interpretações que exijam verdadeiras ginásticas mentais. Só devemos ir ao
complexo se houver indício de revelação progressiva.
4. CUIDADO COM OS TEXTOS “MISTERIOSOS”
Não dê atenção a textos obscuros.
Pode parecer estranho, mas esse é um princípio que eu considero dos mais
importantes. Alguns indivíduos tem o prazer em escarafunchar curiosidades
inócuas tais como quem era o jovem nu do final do Evangelho de Marcos (Mc
14:51-52), os detalhes do batismo pelos mortos citados por Paulo em 1Co 15:29,
acerca da pregação de Cristo aos espíritos em prisão, citada em 1Pe 3:18-20.
Assim, perde-se tempo analisando detalhes irrelevantes. Essas questões podem parecer
um "prato cheio" para os eruditos e técnicos textuais do Novo
Testamento, mas, na maioria das vezes, dizem pouco ao cristão comum.
Partamos do princípio que todas
as principais doutrinas e ensinamentos para a nossa vida prática estão expostos
de modo claro na Bíblia. Os textos complicados, porquanto bíblicos, e por isso,
valiosos, não são fundamentais para a nossa fé. Ninguém vai deixar de ser
salvo, por exemplo, se desconhecer o significado do número da besta, 666, de Ap
13. O trabalho do intérprete é aprender os ensinos claros e passá-los adiante.
Não devemos buscar decifrar mistérios, especializarmo-nos em uma espécie de
esoterismo cristão. Tal insistência produz obsessão por posicionamentos
obtusos, que não são saudáveis para a Igreja de Cristo.
5. CONSIDERE A REVELAÇÃO PROGRESSIVA
A terra por si mesma frutifica,
primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, o grão cheio na espiga — Mc
4:28.Algumas verdades foram reveladas em semente no Velho Testamento, e só no
Novo Testamento encontramos sua plena expressão, como por exemplo o ministério
de Cristo, a Igreja, a nova dimensão da guarda do sábado, a situação pós-morte,
etc. Deve-se considerar a revelação progressiva no processo de interpretação.
Alguém pode ler Ecl 9:5 e
concluir uma doutrina errônea, afirmando que "os mortos não sabem cousa
nenhuma". Os adventistas, por exemplo, fazem isso, ensinando que depois da
morte a pessoa fica inconsciente, no túmulo, aguardando o dia da
ressurreição. Essa é uma interpretação que desconsidera claramente a revelação
progressiva. O texto de Eclesiastes não pode ser interpretado sem considerarmos
as passagens do Novo Testamento que falam sobre o estado intermediário, quando
estaremos com Cristo no céu aguardando a ressurreição. Nesse caso, houve uma
progressão da revelação.
6. COMPARE A ESCRITURA COM ESCRITURA
O melhor comentário sobre a
Bíblia é a própria Bíblia. Compare os princípios encontrados com o restante das
Escrituras. Se houver reafirmação da verdade, principalmente no Novo
Testamento, devemos ensiná-la com convicção. Essa regra é chamada pelos
intérpretes de "analogia das Escrituras", e, bem utilizada, evita uma
série de erros grosseiros de interpretação. O intérprete realiza o seu trabalho
convicto de que a Escritura não se contradiz. Algumas verdades são difíceis de
conciliar, mas isso não significa que sejam excludentes.
Um exemplo disso é a questão da
responsabilidade humana e da soberania divina. Alguns afirmam que Deus é quem
decreta e dirige todas as coisas. Ele domina sobre tudo, e todas as coisas
ocorrem segundo o plano predeterminado pelo Senhor (Sl 139:16; Pv 21:1; Is
46:9-11; Mt 10:29; At 2:23, 4:24, 28, 13:48; Rm 8:28-30, 9:8-24; Ef 1:5, 11; I
Ts 5:9; 1Pe 5:11; Ap 1:6). Outros afirmam que, na verdade, o homem é
responsável diante de Deus por seus atos.
A existência do mal no mundo, e
as conseqüências ruins provenientes do pecado são responsabilidade dos anjos e
dos homens e não de Deus (Ez 18:29). Os homens são responsáveis diante de Deus
pela sua rejeição ao Evangelho de Cristo, e quem não crer no Filho de Deus
trará sobre si a justa condenação (Jo 5:24, 40, 6:29, 47-51). Os cristãos
bíblicos aceitam ambos os ensinos como expressão da mais pura verdade de Deus.
Aqui encontramos uma antinomia. Antinomia, conforme o Dicionário Aurélio, é o
"conflito entre duas afirmações demonstradas ou refutadas aparentemente
com igual rigor". O problema, nas antinomias, não está na Bíblia, e sim na
finitude de nossa compreensão.
O fato de não entendermos alguma
coisa não significa que ela esteja errada. O professor ou pregador deve ensinar
tanto a soberania divina quanto a responsabilidade humana. Algumas respostas a
tais questões só nos serão fornecidas na eternidade.
7. CUIDADO COM AS NOVAS “REVELAÇÕES”
Quando falamos de interpretação,
o Espírito Santo não concede nova revelação, e sim iluminação. Não há nova
verdade a ser acrescentada sobre o texto bíblico. Há nova iluminação, ou seja,
são-nos mostrados novos aspectos da verdade que são relevantes para a nossa
situação atual.
A verdade é apenas uma. As
aplicações dessa verdade é que são diversas. Somos incumbidos de entender a
verdade e, sob a unção do Espírito de Cristo aplicá-la.
Não fomos chamados para descobrir
novas coisas, mas para ensinar as velhas e maravilhosas verdades de forma nova,
pois elas são sempre necessárias em nossa geração.
8. OBSERVE O CONTEXTO
Conforme W. D. Chamberlain,
"para interpretar contextualmente, há de se levar em conta o conteúdo
geral de todo o documento, se ele é um discurso unificado. Então, o matiz de
pensamento que circunscreve a passagem, pois que mui freqüentemente afeta ele o
sentido dos termos a interpretar-se". Em algumas ocasiões, como por
exemplo, numa interpretação de uma epístola, o seu "teor geral dita o
sentido real da passagem". Quando desconsideramos o contexto, estamos
sujeitos a errar a nossa interpretação.
Um exemplo clássico é Ap 3:20:
"Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a
porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo". Tenho ouvido
muitos pregadores que usam a passagem como uma espécie de apelo
evangelístico. O convite do Senhor, no entanto, neste caso, não é dirigido
aos pecadores para que eles se arrependam e creiam no evangelho. O convite de
Cristo aqui dirige-se aos crentes orgulhosos. O versículo em questão faz parte
da carta de Jesus à Igreja de Laodicéia (Ap 3:14).
Um modo eficaz de olharmos os
textos contextualmente é os observarmos em blocos redacionais, conforme o
exemplo abaixo:
[Evangelho de João]:
1. Capítulos, divididos em duas
partes:
2. Caps. 1-13: O Livro dos Sinais.
3. Caps. 14-21: O Livro da Glória.
2. Caps. 1-13: O Livro dos Sinais.
3. Caps. 14-21: O Livro da Glória.
Objetivo do
livro:
1. Gerar fé nos leitores, de que Jesus Cristo é o
Filho de Deus (Jo 20:31).
Seção: É uma divisão maior do livro. No caso do Ev. de
João, podemos afirmar que existem duas grandes seções: Sinais e Glória.
Capítulo: é uma unidade menor dentro de uma seção. É interessante
dividirmos os parágrafos dentro dos capítulos para entendermos melhor o texto.
Perícope ou texto analisado: é a unidade menor dentro de um capítulo. Pode abranger um ou mais
parágrafos. O texto estudado pode abranger apenas parte de um parágrafo, ou
mesmo um só versículo. É importante estabelecer a relação deste texto com o
capítulo, com a seção e com o restante do livro. Essa análise ampla permite uma
interpretação harmoniosa e equilibrada.
A interpretação deve levar em
conta toda essa estrutura textual. Chamamos de contexto imediato tudo aquilo
que está próximo ao texto estudado (parágrafo e capítulo).
Chamamos de contexto remoto tudo
aquilo que está distante, mas ao mesmo tempo abrange o texto estudado (seção—
divisões maiores da obra, e o livro como um todo).
Devemos sempre perguntar ao
texto: qual o contexto próximo? O parágrafo está tratando de que tema? E o
capítulo? E a seção? Aqui estabeleceremos uma relação entre os elementos
textuais, e estaremos mais aptos a discernir o significado da passagem. Todo
texto deve ser interpretado dentro do seu contexto. Como diz um ditado da IB,
"texto tirado de contexto é pretexto". Muitos usam textos deslocados
para provar as suas doutrinas preferidas. Não caiamos nesse ardil!
9. INTERPRETAÇÃO ALEGÓRICA OU LITERAL?
Ao interpretarmos um texto,
fujamos da interpretação alegórica. O texto normalmente significa aquilo que
está escrito mesmo. Em ocasiões iremos nos defrontar com figuras de linguagem.
Cristo diz, por exemplo, que ele é "a porta" (Jo 10:7). Nesse caso, o
bom senso nos diz que cabe aqui uma interpretação simbólica. Em outras
situações, porém, devemos cuidar para não alegorizar aquilo que é literal.
Ouvi certa vez uma pregação sobre
o casamento de Isaque relatado em Gn 24. O pregador disse que o servo de Abraão
era um "tipo" do Espírito Santo, e que Rebeca é um símbolo da Igreja.
Se formos utilizar tais artifícios em nossa interpretação, poderemos
transformar o texto bíblico naquilo que quisermos. Devemos levar a Bíblia a
sério.
Os casos onde não estiver clara
uma figura de linguagem, ou onde o estilo de literatura não for claramente
figurativo, tais como nos Salmos e no Apocalipse, devemos sempre interpretar
literalmente. O bom senso e a liderança do Espírito Santo nos garantirão bom resultado
nessa empreitada.
ANDANDO DE BICICLETA NAS RUAS DO A.T.
Sei que, inicialmente, a observação dos nove
princípios acima poderá parecer um pouco complicada. Alguns, vendo a grandeza
da tarefa, poderão até pensar em desistir. Quero incentivá-los a perseverarem.
Deus recompensa nosso esforço de buscarmos entender melhor a sua Palavra. A
situação assemelha-se a andar de bicicleta. Nas primeiras vezes que tentamos
tivemos dificuldades. Alguém nos empurrava e, mesmo com rodinhas, levávamos uns
bons tombos! Com o tempo, porém, fomos adquirindo confiança e coordenação. Começamos
a pedalar com firmeza e ganhamos equilíbrio. Não precisamos mais de quem nos
empurrasse.
Depois, foram retiradas as
rodinhas, e hoje passeamos prazeirosamente com nossas bicicletas. Sentamos no
selim, e nem notamos que estamos tendo de coordenar um monte de movimentos ao
mesmo tempo. O mesmo ocorre com a IB. Depois de certo tempo, adquiriremos o
hábito de caminhar seguindo a trilha destas nove regrinhas, e exploraremos as
ruas do Antigo e Novo Testamentos. Faremos isso prazerosamente, sem tantas dificuldades.
Aqui, é claro, termina a similaridade com o treinamento na bicicleta. No caso
da IB, jamais poderemos dispensar a ajuda de nosso treinador: o Espírito Santo.
Ele sempre estará conosco neste caminho, e nosso destino será a terra da boa
doutrina, de onde poderemos encontrar ao Senhor Jesus Cristo, e desfrutar por
ele do gostoso fruto da árvore da vida. A Ele toda honra e toda glória.