Por Matheus Negri
Este breve ensaio é resultado de reflexões a partir da
prática do autor e de debates com pares na academia e no diálogo com membros e
participantes das mais variadas denominações. Das conversas surge a questão: o
quanto a igreja deve se apropriar das técnicas do mercado para avaliar seu
desempenho? Quais os resultados que devem ser cobrados? Nota-se um grande apelo
ao número de membros ou participantes, e o uso de teorias, métodos e técnicas
desenvolvidas no âmbito do mercado para alcançar o objetivo.
O que se propõe é apresentar, através de uma metodologia
simples, adotada muitas vezes pela teologia prática – ver, julgar e agir –, o
desafio da moral do mercado colocado à administração eclesiástica hoje, buscar
um resgate na moral[1] bíblico-cristã, e propor caminhos práticos para a
aplicação dessa moral.
A PRESENTE SITUAÇÃO DA IGREJA E SEU CONTEXTO
Através da metáfora do líquido, Z. Bauman[2] explica
contexto contemporâneo. Para ele a liquidez explicaria de modo mais adequado a
dificuldade de se padronizar ou “encaixotar” os ideais contemporâneos que
conflitam, de certa maneira, com a solidez da modernidade passada. A liquidez,
ou fragmentação da cultura ocidental, a partir do século XX, tomou proporções
assustadoras, devido às duas grandes guerras, às lutas pelos direitos civis, a
queda do regime comunista, e os avanços da tecnologia da informação. O
ocidental tornou-se um verdadeiro cidadão do mundo, conhecedor da vida íntima
das celebridades nacionais e internacionais, sabendo mais das mudanças
climáticas da Antártida do que sabe sobre o manual de sua televisão. A partir
do final do século XX, constata J. Arduini, juntamente com a intensificação da
informática e os avanços da internet, houve uma intensa globalização
neocapitalista e um surto místico-psíquico-religioso.[3]
Essas mudanças, como é de se esperar, causam um impacto
profundo no ser humano, suas relações e em suas concepções sobre a cultura, a
ciência, a técnica e a moral.[4] Trata-se de uma mudança que, no dizer de Arduini,
leva a preferir a intuição à racionalidade, a experiência subjetiva aos
sistemas metafísicos, a cultivar o emocionalismo, o sincretismo, o prazer, e em
contrapartida a tolerância à economia, que de maneira imoral, deteriora
populações inteiras.[5] É desafiante o complexo quadro instaurado no ocidente
acerca das instituições garantidoras de referenciais para a sociedade
(política, família e religião).
Neste quadro está inserida a igreja, que de maneira nenhuma
passa imune ao seu tempo e a decorrente liquidez. E é neste contexto que a
administração eclesiástica se inscreve. Aparentemente um caminho se impõe à
igreja neste momento: abraçar a cultura globalizada neocapitalista. Adentrando
a lei do mercado, que segundo Bauman é marcada pela produção e consumo
imediato.[6]
Ao assumir a cultura neocapitalista tende a se
autocompreender como uma empresa, dessa forma as bases em que fundamenta suas
ações estão ligadas não nas Sagradas Escrituras, mas as normas da efetividade
impostas pelo mercado, como teorias da administração e marketing. E como bem
salienta Michel Sandel[7], não há um limite claro sobre a moralidade do
mercado. Que para Bauman e Donskis[8] se manifesta na perda da sensibilidade
diante do imperativo do consumo e a consequente falta de critérios. E esse
sintoma pode ser percebido por algumas estruturas denominacionais que trabalham
por franquias, e não medem esforços para angariar fundos. Ou ainda no forte
apelo para o crescimento numérico de membros e participantes, julgando assim
que por meios mercadológicos de oferta e procura, qual é a melhor igreja. Tema
muito presente na literatura focada em evangelismo e pela contemporânea
matéria, em seminários e faculdades de teologia, intitulada crescimento de
igreja.[9]
Como afirma João R. Buhr[10], “Para conseguirem aumentar de
tamanho, muitas vezes, são administradas como empresas. É cada vez mais comum
aplicar métodos empresariais para obter resultados satisfatórios”. E a
resultante da apropriação deste método é demonstrada por Buhr no sofrimento dos
pastores. E acrescento aqui não só o sofrimento dos pastores, mas também de
toda a comunidade que sofre juntamente com a pressão por resultados.
Faz-se necessário perguntar se esta situação deve ser
aceita ou refutada? O que proponho neste caminho de liquidez é o encontro de
uma rocha forme. Mesmo que o tempo presente seja marcado pela moral do mercado,
a igreja deve ser marcada pela moral bíblica, e nela ter o seu fundamento.
Vejamos então a moral cristã.
A MORAL CRISTÃ A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE CRISTO
A fé cristã é elaborada a partir da vida e dos ensinamentos
de Jesus de Nazaré que estão reunidos num conjunto de quatro livros bíblicos
chamados de Evangelhos. Jesus Cristo é tido como o filho de Deus encarnado, o
Messias prometido e esperado pelo Antigo Testamento, qual libertaria o seu povo
da tirania na fundação de um reino de paz e amor. No seu tempo de vida e
ministério na terra percorre as ruas da Palestina pregando o evangelho das boas
novas, anunciando a chegada do Reino de Deus. Cristo resignifica as antigas
leis judaicas, dadas por Deus no monte Sinai para Moisés, não as invalida, mas
apresenta que a lei mais importante é o amor. Aqui está a novidade trazida que
os homens deveriam amar a todos, inclusive seus inimigos.
No cristianismo a conduta do homem deve ser guiada pela
compaixão e misericórdia, da mesma forma que encontramos na moral hebraica. Um
bom exemplo é o evangelho de Mateus, nele o evangelista organiza as boas novas
de Cristo em cinco ciclos de discurso. No primeiro ciclo encontramos uma
sequencia de capítulos conhecido como Sermão da Montanha, Mateus 5-7, no
qual podemos observar que existe uma inversão de valores, pois inicia com as, Bem
Aventuranças, valorizando os pobres de espírito, os que choram, os humildes, os
que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os
pacificadores, os perseguidos e todos os que sofrerem pelo nome de Cristo. A
todos estes é prometido consolo, paz e felicidade no Reino de Deus. Confira o
texto:
Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou.
Seus discípulos aproximaram-se dele, e ele começou a ensiná-los, dizendo:
“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. Bem-aventurados os
humildes, pois eles receberão a terra por herança. Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos. Bem-aventurados os
misericordiosos, pois obterão misericórdia. Bem-aventurados os puros de
coração, pois verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, pois serão
chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça,
pois deles é o Reino dos céus. “Bem-aventurados serão vocês quando, por minha
causa os insultarem, perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra
vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a recompensa de vocês nos
céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês” (Mateus
5.1-12).
Cristo afirma também que a justiça de seus seguidores deve
ser superior a dos fariseus, os líderes judaicos conhecidos por sua rigorosa
prática religiosa, e que sua conduta deveria ser de humildade, pois assim
seriam exaltados no Reino (Cf. Mateus 5.17-20). Neste capítulo cinco ensina que
a ira possui o mesmo peso do homicídio. O adultério é cometido pela intenção do
coração e não pela prática do ato. E de forma espantosa o amor deve ser a
todos, inclusive aos inimigos, visto que neste momento Israel pertence a Roma e
sofre com a invasão e perseguição. Coloca assim que o cristão ao ser agredido
deve dar a outra face e não buscar a vingança, pois seu padrão de conduta é a
próprio Deus (Cf. Mateus 5.21-47).
Jesus ensina ainda que os dois maiores mandamentos são amar
a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo:
Respondeu Jesus: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu
coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e
maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si
mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus
22.37-40).
Assim por esta nova lei, a do amor, Cristo apresenta um
novo projeto de vida para seus seguidores, abrindo um novo campo na moralidade
não sendo somente externa, mas interna partindo das intenções do ser humano.
Estritamente teocêntrica, o centro está, então, para as intenções do discípulo.
O projeto de vida dos antigos gregos era baseado na
felicidade (eudaimonia) na polis. Dos quais Aristóteles afirma “todo o
saber e toda intenção têm um bem por que anseiam […]. Tanto a maioria como os
mais sofisticados dizem ser a felicidade, por que supõe que ser feliz é o mesmo
que viver bem e passar bem”[11], felicidade está posta como um esforço político
por parte do homem em suas ações[12]. Já o seguidor de Cristo tem sua
felicidade em uma vida futura. Esta sua nova vida começa agora e é
fundamentalmente marcada pelo amor e compaixão. Ele espera ansioso, em meio aos
sofrimentos, a volta de seu Senhor e a manifestação pela de seu Reino eterno
(Cf. Romanos 8.18-25).
Cristo levou seus ensinamentos até as últimas
consequências. Sofreu uma morte de cruz e assim afirmando que o mais importante
é o amor, pois do que explica o apóstolo Paulo em sua carta aos romanos: “Mas
Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda
éramos pecadores” (Romanos 5.8).
Passamos agora a considerar o legado desta nova moral no
mundo em que estava inserido. Um projeto audacioso como este e de sua magnitude
de forma nenhuma pode passar despercebido e nem deveria. Jesus afirma no fim do
Evangelho de Mateus que suas palavras deveriam ser ensinadas a todos, temos um
projeto de vida para toda a terra, e não somente para um seleto grupo de
pessoas. Nas palavras do evangelho: “Portanto, vão e façam discípulos de todas
as nações, batizando-os em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-os a obedecer a tudo o que lhes ordenei” (Mateus 28.19,20).
CAMINHOS PRÁTICOS
Baseado, então, nos ensinamentos dos evangelhos e dos
apóstolos, que se encontram nos outros livros do novo testamento, e a partir da
uma experiência de Jesus do Antigo Testamento, temos que o projeto de vida
cristã para o ser humano é composto da seguinte maneira: quanto a sua
existência deve ser para a glória de Deus (Cf. 1 Coríntios 10.31); quanto ao
seu relacionamento com as outras pessoas, independente com quem e onde esteja,
deverá seguir a regra do amor incondicional (Cf. Mateus 22.36-40); sua relação
com a natureza e o mundo criado deverá seguir a lei do amor e do respeito,
visto que ele é criação de Deus e ele, o ser humano, é posto como um
administrador (Cf. Gênesis 2.15); e quanto a morte esta é somente uma passagem
para a verdadeira vida, a eterna, no qual aquele que seguir o projeto de vida
da moral cristã terá a paz e o consolo prometidos, já os que não o fizeram
passarão a eternidade em sofrimento (Cf. Apocalipse 21.1-8).
Desta maneira encontramos um fundamento moral inegociável
para a igreja, como afirmou o Concílio Vaticano II: peregrina e por
natureza missionária.[13] Como peregrina ela está atravessando o tempo e
não presa a ele. Por isso não pode se deixar dominar pelas estruturas e visões
preponderantes, ou imperativas, de determinada cultura. Mas sim agir a partir
de sua natureza como uma missionária que traduz a sua mensagem, de tal forma
que aqueles que passam por seu caminho são transformados a partir do fundamento
de Cristo. Essa transformação é profunda e trabalha no interior do ser,
transformando a cosmovisão, aquilo que baliza o agir.
O retorno ao fundamento bíblico-moral da igreja é um
imperativo, visto que a crise de sua identidade é geradora da falta de
credibilidade diante da sociedade, de dar respostas insuficientes ao sofrimento
econômico, ao desespero das massas, a intolerância religiosa, que num crescente
protagoniza o empoderamento dos discursos de ódio. E por fim, responder a
sociedade brasileira por meio de uma teologia pública que contemple a política
apartidária. Mesmo a situação vigente sendo imperativa, algumas dicas e são bem
vindas.
Em primeiro lugar, ampliar o debate. Os teólogos e
pastores precisam levar o debate sobre a igreja, sua função e fundamento, para
os leigos. De forma que todo o corpo vivo de Cristo possa refletir sobre sua
práxis. A partir de livre exame das escrituras constatar, e obviamente
encorajar, a reflexão profética da realidade.
Em segundo lugar, fazer uma diagnóstica da realidade. Para
Dunker a “’racionalidade diagnóstica’ opera cifrando, reconhecendo e nomeando o
mal-estar em modos mais ou menos legítimos de sofrimento, e secundariamente,
estipulando, no interior destes, as formas de sintoma”.[14] Assim a igreja
precisa identificar a articulação entre sintoma, sofrimento e mal-estar. Saber
onde ela pode ser a resposta e onde ela é a causadora do sofrimento.
Em terceiro lugar, deixar o método. Coma importação
irrefletida da teologia, ou prática, evangelical norte-americana o método torna-se
o fim em si mesmo. De forma que os líderes eclesiásticos e o povo da igreja são
apenas usados para atingir metas e números. A partir de técnicas utilitaristas
a pessoa humana é diluída em cálculo frio e vil. O método deve ser deixado de
lado e as palavras e prática de Jesus devem ocupar o seu lugar por definitivo:
a salvação do sujeito, de maneira integral, é o começo, o meio e o fim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A igreja fundada por Cristo com o passar do tempo teve
muita dificuldade em manter suas raízes e fundamentos. Seguidamente procurou
sempre se adaptar a cosmovisão vigente. Martin Dreher[15] destaca a tradução da
fé inicial dos cristãos palestinos para a cultura helênica, depois a
latinização dos pais apostólicos, a germanização decorrente das invasões e
missões ao povo bárbaro, os conflitos da reforma e contra-reforma, o advento do
iluminismo e hoje destacamos a absorção, inacreditável, da moral relativista e
insensível do neocapitalismo pós-moderno.
Nossa abordagem procurou apresentar à realidade imposta à
igreja e, à luz da Palavra de Deus, repensar novas soluções para os novos
desafios ligados à moral neocapitalisa que adentrou os portões das igrejas
evangélicas brasileiras. Esses desafios são novos e decorrentes da
pós-modernidade, e têm atravessado diversas denominações. A partir desses,
pode-se pensar uma moral bíblica para a igreja fundamentada nas palavras de seu
Senhor e Salvador.
REFERÊNCIAS
ARDUINI, Juvenal. Antropologia: ousar para
reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002.
ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. São Paulo: Editora
Atlas, 2009.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. Sociedade
Bíblica Internacional. São Paulo: Editora Geográfica, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009.
________________. Modernidade líquida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zigmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira Moral: a
perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
BUHR, João R. Igrejas ou empresas? Uma breve
reflexão sobre o sofrimento causado a pastores quando igrejas são tratadas como
empresas. Protestantismo em Revista, Vol. 40 (2016
DREHER, Martin N. História do povo de Deus: uma
leitura latino-amaricana. São Leopoldo: Sinodal, 2011.
DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma
psicopatologia do Brasil ente muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
MONDIN, Battista. Antropologia teológica. São
Paulo: Paulus, 1979.
MUZIO, Rubens. O DNA da Igreja: comunidades
cristã transformando a nação. Curitiba: Esperança, 2010.
SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra: os
limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
VATICANO. Documentos do Concílio Vaticano II. São
Paulo: Paulus, 2002.
NOTAS
[1] Moral, que possui sua raiz no termo latino, mores
(hábitos, costumes). Por isso é possível falar de uma moral cristã, estes são
os costumes e hábitos próprios desta religião.
[2] BAUMAN, 2001, p. 9.
[3] ARDUINI, 2002, p. 13.
[4] MONDIN, 1979, p. 46.
[5] ARDUINI, 2002, p. 13.
[6] BAUMAN, 2009, p. 8,9.
[7] SANDEL, 2012, p. 19.
[8] BAUMAN,DONSKIS, 2014, p. 158.
[9] MUZIO, 2010, p. 161.
[10] BUHR, 2016, p. 111-122.
[11] ARISTÓTELES, 2009, p. 20.
[12] ARISTÓTELES, 2009, p. 37
[13] VATICANO, p. 314.
[14] DUNKER, 2015, p. 20.
[15] DREHER, 2011.