“…a autoridade legislativa, ou suprema,
não pode arrogar-se o poder de governar por meio de decretos
arbitrários extemporâneos, mas está obrigada a dispensar justiça e a
decidir acerca dos direitos dos súbditos por intermédio de leis
promulgadas e fixas, e de juízes conhecidos e autorizados. Pois, desde
que a lei de natureza não é escrita e que, portanto, não se pode
encontrá-la senão no espírito dos homens, não será possível, na ausência
de um juiz estabelecido, convencer com facilidade de seu equívoco
aqueles que – movidos pela paixão ou interesse – venham a citá-la ou
aplicá-la erroneamente.”
J. Locke (1632-1704)
J. Locke (1632-1704)
Introduzida na Grécia continental pela mão de Górgias, a partir da
Sicília, a Retórica passou, desde então, a ocupar um lugar privilegiado
na educação dos jovens.
Os sofistas, combatidos severamente nalguns diálogos platônicos, eram nesse tempo mestres na arte oratória.
A verdade, para Platão, não pode, contudo, ser dissolvida no jogo das palavras. Havia que ligar, ensinava, oethos ao logos.
Trata-se de uma história que remonta ao séc. V. a.C., coincidindo com a formação do espaço público no mundo antigo.
Ágora, Cidadania, Felicidade Pública, eis três conceitos incindíveis.
O Estagirita e autor da Ética a Nicômaco viria, por sua vez, a
sistematizar os estudos retóricos, retomados mais tarde, com brilho,
por Marco Túlio Cícero (estadista e jurisconsulto romano) em obras
clássicas de grande fôlego, entrelaçando a nova disciplina com a
estética e a dialética.
O seu embate contra Catilina é também uma aliciante defesa da República.
Na Idade Média, a Retórica entra no currículo universitário como uma
das três “artes liberais”, ao lado da Lógica e da Gramática.
É impossível, desde os dias do reflexivo e profundo Aristóteles,
separar a Política da Retórica, vista, em termos simples, como a arte de persuadir e de construir o consenso
político, com base num saber sólido e seriamente edificado,
cientificamente estruturado, posto que não no sentido “positivista” do
termo.
A retórica é intrínseca à formação humanística e ao próprio trabalho da inteligência.
Dela não pode prescindir jamais o “homem excelente”, para usarmos uma apropriada expressão de Ortega y Gasset.
O político tem de ser convincente, claro e objetivo e pugnar, ao mesmo tempo, pelo bem comum. Má oratória, mau político.
Hoje ela renasce, pujante, pelo filtro da Semiótica e dos novos estudos da teoria da comunicação e domarketing. (Para uma instrutiva abordagem, verhttp://www.uta.edu/faculty/mputnam/COMS3312/Notes/Ch1.html).
Seria estultícia recusar a sua elevada posição na escala dos valores humanos.
A política, como no-lo mostrou Hannah Arendt, é a rejeição da força e da violência, que são, antes de tudo, substituídas pela persuasão e pela legitimidade.
A política, neste sentido, é o triunfo da racionalidade. A idade da razão.
O ponto indiscutível é justamente este: nas sociedades democráticas
o poder constrói-se a partir do discurso, do diálogo autêntico e da
habilidade retórico-argumentativa; é um poder simbólico, humanizado.
Daí a importância da “arte da argumentação” e da eloquência em geral.
A retórica é uma componente decisiva da educação política.
Jürgen Habermas fala-nos mesmo de uma “teoria da ação comunicativa” e na busca da legitimação pelo consenso, a partir do reconhecimento dos sujeitos comunicantes e do essencial princípio da igualdade.
A democracia requer, portanto, uma “lei da liberdade”, calcada, é certo, no espírito generoso de emancipação. A política tem uma dimensão axiológica que não pode ser subvertida.
A banalização da Política começa precisamente pela banalização da mensagem política.
É muito triste e desolador quando vemos e ouvimos um “político”
confuso, com um raciocínio atabalhoado, incapaz, perante o seu
interlocutor, de articular um discurso válido, harmonioso, fecundo e
convincente.
A imagem que fica, nestes casos, é a de alguém incompetente, mal
preparado, não talhado para o mister. A relevância é fundamental.
Um político sério tem de compreender a natureza da sua arte e
conhecer, no mínimo, os segredos e as agruras da sua esfera de ação.
A estratégia política depende em boa medida da retórica. Quer se queira quer não.
No antigo Egito acreditava-se que o poder do faraó era um dom divino,
o que lhe conferia faculdades mágicas. Hoje, o poder advém do povo, do consentimento
dos governados. Há que conquistá-lo por meios lícitos. Fora disto,
estaremos perante uma mera e censurável usurpação, típica das tiranias.
Ler um Chaim Perelman, Wittgenstein ou Umberto Eco é, pois, o melhor
investimento para qualquer principiante que queira atingir, com o passar
dos anos, um patamar de alguma exigência e credibilidade.
Não se pode saltar etapas. Ganha-se imenso em ouvir também a récita
fascinante de J. Huizinga ou em analisar certos discursos políticos,
como o “speech” de Gettysburg, pronunciado por Lincoln em 1863.
Aprender, pela mediação de professores autorizados, as ideias de
grandes pensadores, como Eric Voegelin, pode ser um exercício
gratificante (https://www.youtube.com/watch?v=zxwWtgPEK1Y).
A razão é importante.
Mas o bom político e orador não pode descurar, por outra via, a emoção, que os gregos chamavam pathos. É um aspecto importante.
A paixão cativa os ouvintes; cria uma empatia que facilita sobremaneira a comunicação.
Os grandes estadistas sempre utilizaram esta espécie de “inteligência
emocional” (Daniel Goleman), mobilizando, através de um peculiar
carisma, milhares de pessoas à volta das suas causas. À sapiência
junta-se, assim, um toque de sedução.
A retórica política não se manifesta unicamente através da fala.
O seu meio normal de expressão é o púlpito parlamentar e o palanque dos comícios, mas isto, que é a regra, nem sempre acontece.
Nos dias que correm, nenhum partido político (competitivo) pode
ignorar o papel da televisão, da rádio ou mesmo da Internet, com as suas
novíssimas “redes sociais”, nesta era do Youtube, da “blogosfera”e da
comunicação planetária instantânea.
Pérez Luño, um dos nomes cimeiros da jusfilosofia hispânica, falaria em cibercidadanía ou cidadania.com.
Muitas vezes, a música e a literatura são também utilizadas como poderosos veículos de comunicaçãopolítica.
Norberto Tavares, com a verve única do Santiago profundo, foi neste
sentido um exímio comunicador e mobilizador de consciências, despertando
os seus compatriotas para as questões de democracia, liberdade e
justiça. A arte não é neutra.
Na mesma trilha, embora num contexto político diferente, se situa um Kaká Barbosa, cuja dimokransa, com a sua melodia apelativa, prenhe, aliás, de mordacidade e ironia, é uma crítica à democracia nascente e aos líderes do Movimento para a Democracia, meros representantes, segundo o bardo, de interesses estrangeiros e do, digamos, “capitalismo selvagem”.
No fundo, é a apologia de um modelo econômico autárquico, ao estilo das “sociedades fechadas”.
No Brasil é bem conhecida a ação de Chico Buarque, que tentou
deslegitimar a ditadura militar através da música e da poesia
revolucionária.
Para Heidegger, a obra de arte desvela, com a centelha pura da sua beleza, a verdade. Revela-nos o Ser.
Mas nem sempre, vale dizer.
A arte pode ser igualmente um fator de manipulação, de alienação, de distorção trágica da realidade.
O regime que os “guerrilheiros” brasileiros queriam implantar, em substituição do statu quo, não era no entanto uma democracia constitucional, mas o comunismo de tipo cubano, o que seria decerto mil vezes pior.
Os trovadores cabo-verdianos fizeram, de resto, a mesmíssima coisa
nas vésperas da independência, em 1974/75, atacando o Estado Novo, já
moribundo, através dos seus versos e de um cancioneiro forte e
politicamente comprometido.
Nem sempre, refira-se, com a lucidez necessária, confundindo, de
forma estranha, a conquista da soberania com a liberdade individual. Foi
o bonito!
Logo a seguir, foi instalada uma abjecta ditadura, que
silenciou os opositores e criou, mediante uma série de leis de excepção,
uma polícia política pior do que a antiga PIDE salazarista. Que prendia
e torturava sem compaixão.
A pintura e o cinema são outros recursos retóricos, aliás não despiciendos.
A Guernica de Pablo Picasso é um bom exemplo histórico, assim como os famosos filmes de Michael Moore, que, nalguns casos, não passam todavia de propaganda barata e maliciosa contra certos adversários políticos (ver, sobre isso, http://www.olavodecarvalho.org/textos/1a_leitura_2004_ago.htm).
Há, de fato, muitas formas de comunicar e passar mensagens, sendo que
muitas vezes, à boa maneira de Maquiavel, os fins acabam por justificar
os meios.
Por fim, é de extrema utilidade conhecer o contexto. E dominar algumas técnicas fundamentais.
O PAICV, por ex., nunca abandonou a sua natureza revolucionária, apesar de algum verniz de circunstância.
Os seus dirigentes são todos “camaradas”. É assim que se cumprimentam!
Os velhos hábitos infelizmente não foram superados.
Nenhum deles ousa, de resto, criticar Fidel Castro ou o regime comunista cubano,arcaico e repressivo.
Nunca o fizeram, aliás. São compagnons de route.
Humberto Cardoso, num belo editorial publicado neste jornal (Surreal, 19/11/2014), menciona um facto político curioso. O Governo não conseguiu resolver os problemas básicos do país. E o que faz?
O PAICV, ao mesmo tempo em que promove, usando a máquina do Estado, redes de dependência e assistencialismo, fala insistentemente de “empreendedorismo” e coisas afins (clusters, “transformação”, etc.).
É uma retórica interessante! Não se trata, porém, de nenhuma distração.
O que Humberto parece não perceber é a extrema perversidade disso tudo.
Trata-se de uma técnica de manipulação de consciência. De programação neurolinguística.
É a chamada técnica da estimulação contraditória, a qual visa quebrar a resistência psicológica das pessoas a partir da “injeção” sistemática de um conjunto de absurdos.
O psicólogo russo Ivan Pavlov descobrira, com nitidez, este método de subjugação (verhttp://olavodecarvalho.org/semana/080314dce.html).
O cérebro humano, a partir de um certo ponto, deixa então de oferecer resistência
e a criatura transforma-se, sem o querer, num instrumento dócil de
obediência e manipulação. Perde o sentido crítico. É uma festa para os
“engenheiros sociais”.
A política é o palco de todas as decisões. Entre o Logos e o Mito.
Mas é preciso saber detectar os sinais e a retórica dos signos profundos.
O lobo cobre-se muitas vezes das vestes do cordeiro.
Quem combate um partido de matriz revolucionária tem de conhecer necessariamente o seu modus operandi.
É um conselho de prudência.
FONTE: MSM