Introdução
Corrupção é um assunto permanente na cena brasileira. Não passa um só dia em que não surja notícia ou denúncia de corrupção em alguma parte do país. Aliás, agora até no exterior o assunto surgiu envolvendo o país, no caso da corrupção na FIFA que resultou na prisão de pelo menos um brasileiro. Esse câncer moral atinge todas as áreas da sociedade, inclusive a vida religiosa. Trata-se da corrupção da fé, também disseminada em nosso país, como se pode ver no noticiário dos jornais que volta e meia apontam para as práticas desonestas e imorais de segmentos do cristianismo brasileiro.
A prática da corrupção é coisa antiga, existente desde quando surgiram os primeiros regimes políticos, há alguns milhares de anos. A corrupção da fé também é antiga. Já no oitavo século antes de Cristo, o profeta Miquéias fez uma veemente denúncia dessa prática no reino de Judá. Aliás, praticamente todos os profetas bíblicos abordaram o problema. E é interessante notar que os padrões de ocorrência da corrupção da fé em sua época se repetem em nossos dias, em nosso país. No texto acima citado encontramos cinco desses padrões, que descrevemos a seguir. E à medida que forem descritos você poderá identificá-los na nossa experiência atual.
- A corrupção da fé floresce em um tempo de desigualdades e injustiças sociais
Como resultado do esmagamento do povo humilde da zona rural, sua alternativa era migrar para a periferia de Jerusalém e de Samaria, onde tinha que trabalhar duramente em subempregos para tentar sobreviver. O principal trabalho era a construção das casas e palácios dos ricos e poderosos. Por isso Miquéias denuncia: “Ouvi agora isto, chefes da casa de Jacó, e vós, governantes da casa de Israel, que odiais a justiça e perverteis tudo que é justo, edificando Sião com sangue e Jerusalém com o mal.” (3.9,10). Por causa da miséria e da falta de perspectiva, esses pobres da periferia se tornavam presa fácil de falsos profetas que, em troca de suas últimas posses, lhes faziam promessas mirabolantes de sucesso e vitórias. Quando não havia mais nada a tomar dos pobres, os falsos profetas se tornavam seus algozes, como diz Miquéias: “Assim diz o Senhor a respeito dos profetas que induzem meu povo a erro e clamam: Paz, enquanto têm o que comer; mas proclamam guerra contra aqueles que não lhes dão o que comer.” (3.5).
O crescimento vertiginoso em nosso país das “igrejas” que tomam dinheiro dos pobres, explorando sua fé e enchendo os bolsos dos seus líderes e donos, é a exata repetição daquilo que acontecia no tempo de Miquéias. As bênçãos que a gente humilde busca para sua vida são prometidas em troca da sua contribuição financeira, que muitas vezes representa tudo que a pessoa tem. Quando cessa a contribuição, cessam também as profecias de prosperidade. Quando as falsas esperanças projetadas não se cumprem, os fiéis se desiludem e perdem a capacidade de crer.
- A corrupção da fé se prevalece de um falso avivamento espiritual
Os capítulos 29 a 32 do livro de 2Crônicas descrevem a reforma religiosa promovida pelo rei Ezequias nessa época: o templo foi purificado, o culto a Deus foi restabelecido, a Páscoa voltou a ser celebrada e milhares de animais foram sacrificados como oferta ao Senhor. O cronista chega a dizer que “desde os dias de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, não havia acontecido algo semelhante em Jerusalém.” (2Cr.30.26). A euforia tomou conta do povo.
Junte-se a isso, o fato de que os impérios egípcio e assírio entraram em decadência e deixaram de ameaçar o território judeu com suas incursões ao sul e ao norte, respectivamente. Isto trouxe um período de paz e prosperidade ao reino de Judá. Todavia, a estabilidade política e financeira levava os ricos a ficarem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Por isso, os juízes, governantes, sacerdotes e profetas corruptos diziam: “Estamos em meio a um grande avivamento. Deus está conosco e está nos abençoando grandemente.”
Entretanto a reforma de Ezequias não transformou o povo, pelo contrário, produziu meramente formalismo religioso, porque apenas restaurou o culto levítico, sem conseguir que os judeus praticassem a Lei do Senhor. Ora, sabemos que ativismo religioso, reuniões grandiosas e ofertas generosas não constituem avivamento.
A publicação de dados estatísticos otimistas sobre o crescimento dos evangélicos no Brasil levou muitos líderes evangélicos a falarem em avivamento. A própria imprensa secular fala em avivamento. Mas não há confissão de pecados, não há arrependimento, não há conversão, não há transformação social. A falácia a respeito desse “avivamento” está mascarando a corrupção da fé que se faz abertamente nesses verdadeiros covis de salteadores em que se transformaram certas igrejas “evangélicas”. Como no tempo de Miquéias, os modernos falsos profetas produzem mensagens de prosperidade apoiados num crescimento nominal dos “evangélicos”, o qual não tem nenhum valor moral nem espiritual. A população evangélica cresce exponencialmente, mas o país não muda.
- A corrupção da fé produz um ensino venal e acobertador do pecado
Os abusos contra os pobres e as injustiças sociais eram justificados por uma teologia torta e uma ética capenga, as quais ensinavam que as desigualdades sociais eram perfeitamente aceitáveis em vista da prosperidade da nação. Miquéias diz que eles se apoiavam em Deus para justificar-se. Diziam: “O Senhor está no nosso meio, por isso nenhum mal nos sobrevirá.” (v.11). Como quem diz: “Se estivéssemos fazendo coisa errada, Deus não estaria nos abençoando.”
Entretanto, a respeito de si mesmo, dizia Miquéias: “Mas eu estou cheio do poder do Espírito do Senhor, assim como de justiça e de coragem, para declarar a Jacó a sua transgressão, e a Israel o seu pecado.” (3.8). Miquéias era um solitário: a corrupção dos sacerdotes e profetas estava tão disseminada, que o verdadeiro profeta tornar-se o exército de um homem só lutando contra o mal. O profeta, verdadeiro homem de Deus, não era conivente com o pecado do seu povo, pelo contrário, condenava-o com veemência, como se vê em toda a sua profecia.
Assim como no tempo de Miquéias, uma grande parte dos líderes de igrejas em nosso país pregam um evangelho de conveniência, comodista, a fim de atrair o máximo possível de frequentadores. É um evangelho em que tem valor o carisma e não o caráter, isto é, em que se valoriza “profecias”, “visões”, “dons espirituais”, “louvor”, “adoração”, etc., e não há nenhuma contrapartida ética, não é preciso viver o que se prega e se canta. É o evangelho da graça barata: sem cruz, sem renúncia, sem arrependimento e confissão de pecados, sem conversão verdadeira, sem amor ao próximo e sem justiça social.
- A corrupção da fé leva à esterilidade espiritual
Cem anos mais tarde, o profeta Jeremias nos mostra que permanecia a “noite sem visão”: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Não deis ouvidos às palavras dos profetas, que vos profetizam, enchendo-vos de ilusões; falam da visão do próprio coração, não da boca do Senhor. Estou contra os que profetizam sonhos falsos, diz o Senhor, e os contam, e desviam o meu povo com suas mentiras e com a sua irresponsabilidade. Eu, porém, não os enviei, nem lhes dei ordem; eles não trazem proveito algum a este povo, diz o Senhor.” (Jr.23.16 e 32).
O Senhor não falava, não se manifestava, por um lado, porque não tinha porta-vozes confiáveis, e por outro lado, porque a esses falsos mensageiros não convinha pregar a verdadeira mensagem de Deus, pois esta condenaria francamente seu comportamento abominável, bem como o de seus companheiros de corrupção.
Diariamente, nos dias atuais, falsos profetas abrem a Bíblia, leem a Bíblia, mas não pregam a Bíblia. O texto bíblico é um mero pretexto para ensinar heresia, superstição, sugestões de auto-ajuda e pensamento positivo, para manipular o povo, para legitimar o autoritarismo ditatorial, para disseminar preconceitos, para justificar uma cultura de guerra espiritual, para estimular individualismo e egocentrismo, etc. Mais do que analfabetismo bíblico, o que se vê é o uso criminoso da Bíblia para corroborar doutrinas e práticas que nunca estiveram na Bíblia. O resultado é que o povo que os ouve se torna biblicamente analfabeto e espiritualmente supersticioso, e essa ignorância os torna facilmente manipuláveis e os coloca sob o domínio férreo desses líderes corruptores da fé. O povo se torna espiritualmente estéril.
- A corrupção da fé leva à destruição do povo de Deus
Sabemos que isso aconteceu cem anos mais tarde, quando o Senhor “enviou o rei dos babilônios contra eles, o qual (….) não teve piedade nem dos jovens, nem das moças, nem dos velhos, nem dos mais avançados em idade. Também queimaram o templo de Deus, derrubaram os muros de Jerusalém, incendiaram todos os seus palácios e destruíram todos os seus objetos preciosos. Quem escapou da espada, ele levou para a Babilônia; e se tornaram servos dele e de seus filhos, até o tempo do reino da Pérsia.” (2Cr.36.17,19,20). Triste destino de um povo que foi corrompido e se deixou corromper naquilo que tinha de mais sagrado, que era a fé em Yahweh.
Paulo Romeiro, fundador e pastor da Igreja Cristã da Trindade, em São Paulo, escreveu o livro Decepcionados Com a Graça, como resultado da sua tese de doutorado na Universidade Metodista de São Paulo. O livro fala das conclusões de uma extensa pesquisa com pessoas que deixaram de frequentar uma determinada igreja neopentecostal, adepta inconteste da Teologia da Prosperidade. A principal conclusão de Romeiro é que a fé dessas pessoas foi destruída pela frustração provocada nelas por causa do não cumprimento das promessas de prosperidade e vitória. Com o fato agravante de muitas vezes essa frustração veio acompanhada da perda do pouco que elas tinham, porque o deram à igreja e seu dono.
Outro livro que trata do assunto é Feridos em Nome de Deus, escrito pela jornalista Marília de Camargo César, resultado de pesquisa feita com pessoas adoecidas psicologicamente e espiritualmente após terem sido oprimidas por pastores manipuladores e déspotas.
Entretanto, a corrupção da fé em nossos dias tem provocado não somente a destruição de pessoas, mas também a destruição da reputação do cristianismo, se não a reputação do próprio Deus. Hoje em dia existe um certo constrangimento em usar o título de evangélico, em vista do descrédito desse nome, provocado por líderes corruptos e cínicos, e igrejas que nada têm de evangélicas.
Conclusão
Cem anos depois da atuação de Miquéias em Jerusalém, outro profeta proclamou a mesma palavra, na mesma cidade, apontando e condenando a mesma corrupção da fé, que havia continuado e até aumentado durante esse século. Porém, os ouvintes desse profeta – Jeremias – não foram tão tolerantes como os ouvintes de Miquéias. Incomodados pela sua contundência, os sacerdotes e profetas corruptos pediram a condenação de Jeremias à morte, mas as autoridades de Judá não os atenderam, porque respeitavam Jeremias como um autêntico mensageiro do Senhor. O detalhe interessante desse episódio é que alguns anciãos defenderam Jeremias usando como argumento a atuação de Miquéias um século antes, dizendo que o rei Ezequias ouviu a mensagem deste último, temeu o Senhor e implorou o seu favor, e por essa razão o Senhor adiou o castigo profetizado por ele.
Essa é a única citação da palavra de um profeta em outro livro profético da Bíblia, o que mostra a importância do profeta Miquéias, mas principalmente mostra a importância de sua mensagem contra a corrupção da fé. Ainda hoje o Senhor nos adverte por meio de sua Palavra contra o perigo de corromper a fé. Que ele mesmo nos dê poder e graça para preservar a pureza da fé bíblica!