BREVE ANÁLISE DA EPÍSTOLA AOS HEBREUS



Uma epístola anônima do Novo Testamento, colocada depois daquelas identificadas como sendo de Paulo e antes das Epístolas Gerais. É ama exortação a uma experiência completa de salvação, apresentada em um estilo grego clássico e retórico. A epístola é única, repleta de questões e características peculiares a si mesma. Não obstante, ela contém uma profunda visão teológica sobre a natureza da salvação que Deus possibilitou por meio de Seu Filho, Jesus Cristo. Isto é pregado por meio de uma argumentação do tipo rabínica das instituições e afirmações do Antigo Testamento a respeito da salvação de Deus. Por toda a epístola encontram-se exortações e princípios úteis para a alegria da salvação. A igreja primitiva esteve durante algum tempo em um dilema quanto ao que fazer com ela, por causa da incerteza quanto à sua origem; e alguns cristãos contemporâneos a vêem como um enigma, por não compreenderem a profundidade de seu alcance.

Autoria e Canonicidade

A incerteza sobre o autor resultou em uma lenta admissão ao cânon. Os esforços combinados dos patriarcas da Igreja para atribui-la a Paulo foram mais motivados pelo zelo quanto à canonicidade do que pelo desejo de conhecer a sua autoria. No entanto, depois da sua admissão, a sua inspiração e a sua autoridade são claramente certificadas pela Igreja. Como a autoria não é afirmada no texto, ela é um assunto de interesse dos estudiosos e não um comprometimento teológico. Quando a Igreja Ocidental mencionou pela primeira vez essa epístola, nada foi dito sobre a sua autoria. Da Igreja de Alexandria vieram sugestões de que Paulo era o autor; no entanto, Orígenes de Alexandria concluiu: “Mas quanto a quem realmente escreveu a epístola, Deus sabe a verdade sobre esse assunto”. A história subsequente da questão atesta a sabedoria da conclusão de Orígenes, pois alguns estudiosos do assunto na época da Reforma sugeriram como autores, além de Paulo, Barnabé, Clemente de Roma e Lucas. Lutero foi o primeiro a sugerir Apoio. Como os estudos da Bíblia desenvolveram-se na época da Reforma, cada vez menos estudiosos sustentaram a autoria de Paulo, de modo que poucos a defendem de forma séria hoje em dia. No entanto, ela continuou a ser homileticamente conveniente, e é assim com frequência afirmada de forma inquestionável. Também são sugeridos como autores Filipe, o diácono, Priscila e Aqüila, Aristion, Silas, Marcos e Judas. Entre as evidências apresentadas para a autoria de Paulo, estão a menção de Pedro a uma carta escrita por Paulo, possivelmente aos judeus (2 Pe 3.15,16); a associação com Timóteo (cf. Hb 13.23) e Roma (cf. v. 24); um final parecido com os finais de Paulo; e muitos pontos de concordância teológica. A evidência mais freqüentemente oferecida, no entanto, é simplesmente a tradição. Na verdade, este é provavelmente o argumento mais forte e não deve ser descartado sem razão. O fato é que Paulo é o candidato sugerido mais ampla mente aceito, e ele tem sido aceito por mais pessoas e durante um período de tempo mais longo do que qualquer outro candidato. Entretanto, um grande número de razões tem sido apresentadas para descartar a tradicional autoria de Paulo. A Igreja levou um longo tempo para sugeri-la, e a sugestão veio da parte da Igreja que provavelmente tinha menos conhecimento, e sem uma cuidadosa argumentação, ao passo que a parte que provavelmente tinha mais conhecimento se absteve. Contudo, foi considerada tradicional durante a época dos estudiosos menos críticos. A falta de assinatura e saudações pessoais, e o uso exclusivo da LXX não são típicos das epístolas assinadas por Paulo. O estilo não é semelhante ao daquelas, no sentido de que utiliza retórica esmerada, espírito helenista, idéias completas e sentenças equilibradas. Também existe um vocabulário diferente e um ponto de vista teológico peculiar. Paulo representa Cristo habitando em cada crente, ao passo que, em Hebreus, Ele está representado “à destra do Pai”; Paulo mostra a Lei como sendo eticamente impossível, ao passo que Hebreus argumenta que ela é cerimonialmente impossível. Além disso, esta epístola não se encaixa facilmente no itinerário de Paulo (ef. Hb 13.23). O argumento mais forte contra a autoria de Paulo é o de que parece impossível para o mesmo homem reconhecer uma fonte secundária de informações (2.3) e, em outros pontos, insistir nas revelações em primeira mão e diretas (G1 1.11-24). Apoio é o personagem apostólico cuja descrição bíblica (At 18.24-28; 1 Co 1.13; 3.4) mais se aproxima do tipo de homem que escreveria uma epístola como Hebreus. Ele era um judeu de Alexandria, um “varão eloqüente e poderoso nas Escrituras”, e intimamente associado com Paulo. Primeiramente sugerida por Lutero, esta se tornou a versão aceita por um número crescente de estudiosos, em que estão incluídos T. W. Manson, W. F. Howard, C. Spicq, Alford, F. W. Farrar e Hugh Montefíore. Contudo, isso não justifica a omissão do seu nome, e parece estranho que a Igreja de Alexandria não conheça nem defenda fervorosamente a autoria de Apoio.

Data

Diversas afirmações indicam que a epístola foi escrita durante a segunda geração do período apostólico, o que se deve, por exemplo, ao processo de transmissão (2.1-4), à época do crescimento (5.12), aos “dias passados” (10.32), aos líderes mortos (13.7), e à prisão de Timóteo (13.23). Contudo, as instituições judaicas ainda estavam em operação e o Templo ainda existia (13.10,11), embora em breve deixaria de existir (12.27) e a perseguição fosse iminente (10.32ss.; 12.4). Estes fatores parecem colocar a escrita ao redor do final dos anos 60 d.C., aprox. entre 67 e 69.

Destinatários e Leitores Destinatários

É difícil identificar os destinatários e o público leitor, uma vez que não existem afirmações internas nem externas. O título e o uso do Antigo Testamento foram tomados como indicações de um público leitor judeu-cristão. Mas esta suposição é cada vez mais desafiada, e foi sugerido que o público leitor era o dos gentios convertidos ao paganismo (Moffatt, E. F. Scott), Outros estudiosos recentes sugerem judeus não-palestinos (William Manson, F. F. Bruce), essênios ou antigos essênios (C. Spicq, Yadin). A representação é da experiência do deserto dos hebreus e do Tabernáculo, e não do estado de restauração e do Templo, e nada é dito sobre a ênfase característica do judaísmo sobre a circuncisão. As citações e as referências do Antigo Testamento não são tão obscuras a ponto de não serem compreendidas por alguém que tenha estudado o Antigo Testamento. Mas as advertências parecem encaixar-se melhor nos cristãos que estavam correndo o risco de recair nas práticas do judaísmo. Talvez se possa supor que, embora o público leitor não necessariamente devesse ser judeu, provavelmente era judeu, ou pelo menos fortemente influenciado pelo judaísmo. A cidade de Roma, agora, parece estar descartada como o lugar da escrita (veja 13.24), mas poderia ser a destinatária. De maior importância que esses assuntos, tanto quanto a interpretação da epístola e sua aplicação contemporânea, é a condição espiritual do público leitor. Os leitores foram convertidos ao cristianismo por meio do testemunho daqueles que tinham conhecido Jesus (2.3ss.)e, portanto, eram os crentes da segunda geração. Mesmo não vindo do judaísmo (ou provavelmente de algum contexto não palestino), eles adquiriram um forte respeito pelas antigas instituições dos hebreus e pelas promessas de Deus a Israel (evidentemente a partir de um estudo da LXX e não da observância da adoração no Templo em Jerusalém). Logo tiveram que suportar uma perseguição significativa (10.32ss.), embora não tão severa quanto aquela que era iminente (12.4). A crise criou neles uma expressão prática de sua fé, e assim preocupavam-se em servir aos seus irmãos - em especial àqueles que estavam sendo mais afetados pela perseguição (6.10; 10.34). Apesar dessas experiências precoces, eles não estavam mais crescendo (5.11-6.20) e, na verdade, estavam começando a retroceder (2. lssj. Não porque estivessem rebelando-se conscientemente contra o evangelho da fé, ou voltando-se proposital mente a outra coisa; mas sim assumindo a salvação como sendo uma bênção garantida, e abusando da graça de Deus, que exigiu o sacrifício de Seu filho (10.26-31). Eles estavam letárgicos e preguiçosos com respeito à sua fé (3.7-4,13) e suscetíveis aos falsos ensinos (13.7-9). Estavam propensos a exagerar na questão da importância dos anjos (1.5-14) e da efetividade da lei, e a depreciar a suficiência do sacrifício de Cristo (9.11-10.31) e a sua perfeição (4.14- 5.10; 7.1-8.13), assim como o valor da realidade suprema que lhes fora prometida (11.13- 16). Eles possuíam a salvação, mas estavam sendo negligentes em termos de vivê-la. Portanto, estavam em perigo, correndo o risco não apenas de deixar de alcançar a plenitude da sua salvação, mas também de perder o privilégio de experimentá-la no presente. Ao invés de receberem as “coisas melhores” que lhes estavam prometidas, corriam o risco de perder as bênçãos já recebidas, ficando apenas com as coisas menores, do passado.

Argumento e Propósito

Esta epístola fornece uma contribuição significativa à teologia do Novo Testamento, mas seu principal objetivo não é teológico. O escritor refere-se a ela como “a palavra desta exortação” (13.22), e este é seu objetivo ao longo de toda a carta. Ele escreve sobre a compaixão daquele que se preocupa com os cristãos como um grupo, e tem algum tipo de responsabilidade pastoral para com eles. Ele os exorta a uma prática determinada e ativa para a sua salvação, de modo que possam alcançar aquilo que a salvação tem para lhes dar, evitando as conseqüências desastrosas da negligência. Podemos considerar que o autor está tentando oferecer um estudo coletivo das advertências, e consequentemente das passagens exortativas. Ele adverte seus leitores sobre as conseqüências inevitáveis da negligência à salvação (2.1-3), a perda do repouso de Deus (3.7-19), a desqualificação para o repouso (4.1-11), a impossibilidade do retorno de uma apostasia consciente (6.4- 8) e a inexistência de uma provisão para o pecado deliberado e consciente (10.26-31). Intimamente ligadas a estas são suas exortações: estejam alertas, para que não se desviem (2.1-4); tenham cuidado, para não perderem a fé (3.7-4.13); prossigam, não dando lugar a qualquer retrocesso (5.11-6.20); aproximem-se, não dando lugar a qualquer afastamento (10.19-39); edifiquem-se, não dando lugar à queda ou à ruína pessoal (12.12-29). Se seus leitores eram judeus ou gentios, ou se era ao judaísmo ou ao paganismo que eles estavam em perigo de retornar, não é tão claro quanto à condição espiritual do momento, e o perigo no qual o autor os encontrou. Ele faz a comparação não com o judaísmo nem com o paganismo, mas com a peregrinação dos hebreus no deserto entre o êxodo da escravidão do pecado e a entrada na terra prometida. A condição em que estavam poderia ser classificada como tão pobre e tão infrutífera quanto o deserto. Como seus leitores eram culpados pelo mesmo tipo de descrença e desobediência que os hebreus na época de Moisés, eles corriam o mesmo perigo de morrer onde estavam, sem jamais entrarem no repouso prometido. Eles não se pareciam com os judeus das sinagogas, trabalhando por sua religião, mas sim com os hebreus do deserto, deixando de colocar em prática sua salvação. O objetivo da Epístola aos Hebreus é o de exortar os cristãos a se tomarem ativos na sua experiência atual com a salvação de Deus, para que possuíssem tudo o que Deus havia prometido, enquanto houvesse tempo.

Teologia

A teologia da epístola é tão única que muito tempo tem sido gasto na comparação e no contraste com o resumo da teologia ao Novo Testamento (especialmente com a teologia de Paulo). Uma investigação ainda maior foi realizada para encontrar raízes ideológicas nas religiões contemporâneas e nos sistemas filosóficos. As primeiras associações foram feitas com Filo, em seguida com o gnosticismo, e mais recentemente com o essenismo judeu. Em cada caso, semelhanças impressionantes foram superadas por divergências mais significativas. O autor mostra familiaridade com uma variedade de escolas de pensamento, mas a sua teologia é distinta e própria. Encontrando uma analogia no dualismo matéria/ideal de Platão, ele fala da realidade presente como sendo apenas uma sombra da realidade eterna. Assim, para os gregos dualistas, Hebreus apresenta Cristo como permitindo o acesso à suprema realidade em Deus. Outra analogia vem do temor a Deus demonstrado pelos hebreus. A epístola mostra que Cristo inaugurou o caminho para Deus no santuário supremo do céu, por meio de sua própria reconciliação “de uma vez por todas”. Assim, para os judeus tementes a Deus, Hebreus apresenta Cristo como permitindo amplo acesso à presença de Deus. Os conceitos teológicos da epístola são, todos, aplicações dessas suposições básicas: Cristo permite acesso à realidade e acesso a Deus. Não é desenvolvida nenhuma preocupação teológica que não faça uma contribuição conceituai à exortação a viver a salvação de Deus. A Cristologia é importante porque o conceito da perfeição nasce da Soteriologia, que se baseia solidamente na Cristologia. A salvação é uma bênção porque foi proporcionada na pessoa do Filho de Deus, A epístola tem um dos mais elevados conceitos da filiação de Cristo que se pode encontrar em qualquer passagem da Bíblia. O Filho é superior aos patriarcas, aos profetas, e até mesmo aos anjos, cuja magnitude era exagerada pelos rabinos. E o Filho de Deus identifica-se com o homem tomando-se homem. O crente, então, toma-se um irmão do Filho de Deus e, portanto, torna-se um filho de Deus. O Filho tornou-se o Sacerdote Supremo e Perfeito para todos os homens (e não exclusivamente o representante do povo da antiga aliança). Ele é o Sacerdote Supremo porque sua reconciliação não precisará jamais ser repetida, ano após ano, e pelos mesmos pecados, mas foi feita “de uma vez por todas”. Ele é o perfeito Sacerdote-Salvador porque verdadeiramente realizou a remoção real do pecado e a redenção do pecador ao invés de simplesmente cobrir o que ainda permanece na consciência. Mantendo a imagem do Dia da Expiação, o Senhor Jesus é representado como o Supremo Sumo Sacerdote. Para mostrar seu sacerdócio inigualável, o autor o chama, por analogia, de “sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque”. A soteriologia de Hebreus não representa a salvação como um objetivo para os perdidos ou como uma possessão dos fiéis, mas exorta os cristãos a fazerem uso da sua salvação. Embora a crucificação e a ressurreição sejam efetivamente assumidas e estejam claramente implícitas, a Epístola aos Hebreus concentra-se no sacrifício, e não na maneira como a vítima é morta no altar. Ela destaca a maneira como o sacrifício é conduzido até o Santíssimo (a mão direita do Pai) e mediado por constante intercessão. A salvação é descrita em termos cerimoniais (sacerdócio supremo) e forenses (nova aliança), e não apenas éticos (Paulo). Então Hebreus mostra a imagem do sumo sacerdote levando o sangue da vítima do altar até o Santo dos Santos (através do véu do Templo), ano após ano, sendo substituído por Jesus levando seu próprio sacrifício da cruz através do véu, entre a realidade imperfeita e a realidade suprema, até o céu, de uma vez por todas. A santificação é descrita em termos altamente peculiares nesta epístola, centrando-se em um conceito de perfeição que é remanescente da insatisfação de Platão com a imperfeição do presente e a antecipação da perfeição do futuro. O objetivo da salvação e Deus é que o homem desfrute o repouso de Deus, do qual fala de várias formas, como a chegada a um destino, como a realização de uma tarefa e como a paz com Deus. O repouso de Deus pode ser definido, então, como a companhia perfeita e eterna de Deus. Mas a perfeição e o repouso são concebidos em termos dinâmicos, de modo que o crente esteja sempre no processo da perfeição e chegando ao seu repouso. A perfeição não é um prêmio a ser conquistado, mas uma experiência a ser perseguida. A apostasia deve ser temida porque não se trata da perda de uma possessão, mas sim de uma experiência. A Epístola aos Hebreus não discute a segurança eterna, uma vez que os leitores estavam completamente convencidos dela e, na verdade, estavam supondo que ela fosse o ponto de negligência da atual experiência da salvação. A epístola mostra que a apostasia é o fracasso no processo da salvação do pecado. Quando uma pessoa não está sendo salva dos seus pecados atuais, ela não está vivendo a salvação. Se persistir nessa condição durante tempo suficiente, ela se tornará tão endurecida que nunca mais retornará à aquela experiência anterior de estar no processo de salvação. O autor, ao invés de ser considerado culpado pela falta de apreço ao recebimento da salvação, deveria receber os créditos por levar a sério a sua utilização. Ele não ensina a segurança eterna porque isso é desnecessário, Ao invés de deixar os leitores à vontade com respeito ao fim, ele os coloca na benéfica tensão entre a segurança sobre a eternidade e as perdas do presente, e essa tensão possibilita a posse da primeira e a fuga da segunda, ao mesmo tempo em que assegura uma salvação completa do começo ao fim.

Bibliografia

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